"A família Bellamy" (Upstairs-downstairs) não é uma série nova, oh não! Foi feita nos anos 1970-75 mas ainda assim, esta soberba série que começa no início do século no qual muitos de nós nascemos e do qual nos despedimos há 12 anos, ainda vai atravessar a primeira guerra mundial e também ultrapassá-la. É a melhor coisa a passar na televisão actualmente.

Ver a “Família Bellamy” é
reflectir constantemente sobre a humanidade.
O ser humano é o que está a ser retratado nesta série que mostra o
quotidiano de dois núcleos distintos: uma família abastada e os empregados que
a servem, na época de entrada do séc. XX, que marca o fim do reinado da Rainha Vitória de Inglaterra. Quando a Índia era uma colónia britânica e lutas eram travadas alem-mar.
É um fascinante retrato de
pessoas, deveres, responsabilidades, orgulho, papéis sociais, sociedade, etc…
Tem personagens verdadeiramente ODIOSAS (Elizabeth, Arthur) e outras que estão sempre a surpreender
e nada, mas nada é estereotipado. Cada uma é profunda e com muita história para
contar. São feitas referências a hábitos da geração anterior, educados na época Vitoriana, como por exemplo, o uso do espartilho ser essencial a uma senhora. Vemos o sistema de comunicação de sinos e campainhas utilizados entre patrões e empregados ser substituído pelos fios eléctricos, e o gás dar a vez à eletricidade. Uma sociedade diferente nos costumes e, no
entanto, tudo é tão igual ao que
sempre será e ao que ainda é hoje.
Chorei ao ver os capítulos
que foram para o ar neste último fim-de-semana. Nenhum criou uma
situação trágica ou de choro. Apenas retratou realidades tão transversais no tempo que suscitam emotividade. Como por exemplo o relato que a Ms. Bridges, a velha cozinheira, faz sobre o momento em
que começou a trabalhar naquela casa, mais de 30 anos antes. Conta ela que os
patrões nem reconheceram o seu esforço na preparação de um molho para o jantar, pois era apenas ajudante de cozinha e teve de substituir subitamente a cozinheira que caiu morta no chão. Os patrões mandaram o molho para trás, argumentando que estava com
grumos, ao que a cozinheira conta: “Como não havia o molho de ter grumos se
tivessem de o preparar diante do olhar gelito da defunda caída ali no chão?”.
Outra
situação é o nascimento de uma criança, o que conduz ao chamamento da ama que
criou todos os bebés naquela família. A senhora, que começou menina mas que
estava já idosa, havia perdido capacidades cognitivas e de coordenação, mas recusava-se a
admiti-lo porque ser AMA de bebés foi o que sempre definiu a sua existência e a utilidade que tem na vida. Ver a senhora idosa a
reclamar dos costumes terem perdido o rigor de outros tempos ao mesmo tempo que
tenta estar à altura dos mesmos é, a meu ver, bastante emotivo. Saber que a
cozinheira ou qualquer empregado trabalhava até morrer, é emotivo. E daí dizer
que esta é uma série que retrata essencialmente, o ser humano.
Seria um erro julgar que a série cai
no retrato estereotipado dos patrões arrogantes que não têm consideração pelos
empregados e que esta cozinheira não gosta do que faz nem dos patrões que tem. Neste período a sociedade tinha hierarquias melhor
definidas, onde as funções de cada indivíduo estavam bem organizadas e, como
tal, para se chegar a cozinheira digna desse nome, começava-se por baixo e só
com provas dadas de qualidades especiais é que se progredia. É o mesmo que se
passa hoje com quem quer chegar a chef. E a mágoa que a cozinheira sentia por
ver um prato por si confeccionado não ser apreciado, suspeito que é
equivalente. A diferença é que na altura qualquer insatisfação por parte dos
patrões podia dar motivo a despedimento e o medo dessa consequência e a
resultante miséria fazia o empregado ralar-se mais. Também, os pobres
trabalhavam muito e ganhavam pouco, não conseguindo nem sobre extrema poupança e no final de suas vidas,
juntar dinheiro suficiente para o que fosse. Hoje e graças a sindicatos e
afins, é o oposto. Numa cozinha actual, o chef é a maior autoridade e é o único
que se pode dar a ares de arrogância e prepotência, que pode humilhar e
subjugar os subalternos e ganha balúrdios de dinheiro, não temendo tanto o
despedimento, mas fazendo com que temam que se demita. Diferençazitas… enormes.
Entre os retratos
sociais, existe também uma descrição das mudanças tecnológicas e
comportamentais. A electricidade que veio a substituir o gás na iluminação das
casas, os fios que faziam campainhas tocar que passaram a ser eletricos e todas
as regras domésticas, desde a forma como se deve manter e tratar de uma casa, aos empregados de que necessita, à limpeza das superfícies, ao engomar dos tecidos, à confecção da comida, à
preparação da mesa ou das toilettes. Todas as funções serviçais estão ali
retratadas com primor, não fossem estes os principais inspiradores que
motivaram a criação desta notória série.
No que respeita a comportamentos,
Elizabeth, a filha do casal Bellamy, prepara-se para entrar na maioridade ao completar
21 anos. Julga-se, como habitualmente os jovens se julgam, mais liberal que os pais, mais certa das suas convicções. Mas é um exemplo raro de pedantismo disfarçado de revolucionarismo. Quer ser liberal, julga-se assim, pretende quebrar com as regras da sociedade,
ser amiga dos empregados, mas acaba é fazendo uma grande confusão, existindo
mesmo episódios em que destrata o semelhante e desrespeita
os empregados tratando-os com petulância e altivez. Ela é tão rebelde que foge
de casa para se juntar a um poeta recusando-se em reconhecer qualquer utilidade
no casamento. Deixa de falar à mãe, revolta-se contra os pais, sem perceber
que os faz sofrer.
![]() |
Elizabeth mostra-se indiferente à filha |
Acaba casada com o poeta revolucionário, mas a vida dá-lhe
uma lição inesperada: afinal, o poeta revolucionário não é tanto assim, nem as
coisas são tanto assim, nem ele é muito chegado a mulheres como aparentava.
Elizabeth acaba por engravidar de um conhecido do marido, numa situação gerada
com primazia, pois tem a cumplicidade dos três. Depois de ter a criança também
não parece muito satisfeita com isso. Enfim, Elizabeth é como inicialmente
retratei: uma personagem que como as outras tem muita profundidade, mas o mais
interessante é que tenta ser o que não é e revolta-se contra os que
supostamente são aquilo que considera errado, acabando por fazer o que critica.
Para não mais me alongar,
resta revelar que esta encantadora e didáctica série durou cinco temporadas e se todas tiverem a mesma qualidade, é
sem dúvida, uma série imperdível para qualquer apreciador de bons momentos
televisivos. Em 2010 a BBC_one voltou a filmá-la, com novas personagens, ambientada no ano de 1936 mas situada no mesmo endereço Londrino: 165 Eaton Place.